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  • Nell Morato

A LÍNGUA DESRESPEITADA


Dizem que a verdade faz bem à saúde, mas no inconsciente, fazem bem as mentiras feitas de verdades.

Tudo parece simples quando se trata da verdade e da mentira, mas não é bem assim. Na Bíblia, por exemplo, a mentira é considerada um pecado, mas já no Gênesis ela é aceita. Quando o patriarca Isaac estava por morrer, decidiu abençoar o primogênito Esaú. Este, no entanto, tinha vendido sua primogenitura a seu irmão Jacó por um prato de lentilha. Grande negócio fez o Jacó, comprou o que não se podia ser vendido. Apoiado por sua mãe, Rebeca, armou uma trapaça, uma mentira para enganar Isaac. Este abençoou Jacó pensando que era Esaú. Não há crítica a esse fato na Bíblia, logo, pode-se concluir que foi uma trapaça sagrada.

Não só Jacó mentiu ao seu pai, como também as crianças mentem, pois assim expressam seus desejos. O mesmo ocorre com adolescentes ou adultos em circunstâncias determinadas. A verdade das mentiras se expressa em Psicanálise no importante conceito de fantasia, que expressa desejos inconscientes. São os desejos que aparecem nos sonhos, por exemplo. O paradoxo do sonho, que é uma ficção formada no inconsciente, é ser o caminho real na busca da verdade. Já a ficção nas artes são as mentiras inventadas que expressam a verdade da realidade. Sem esquecer que terríveis são as mentiras mal-intencionadas.

Franz Kafka viveu uma história em que precisou mentir. Na verdade, usou a ficção na cura de uma criança. Um dia, o escritor tcheco passeava pela Praça Stegliz, em Berlim, com sua namorada Dora. Encontraram um casal amigo e sua filha de quatro anos, que não parava de chorar. O casal explicou a eles que a filha estava desconsolada pela perda da boneca e nada a acalmava. Tinham comprado outras bonecas, e os choros seguiam. Dora tentou acalmar a menina, e nada. Após muita conversa e choro, o silencioso Kafka, de repente, falou: “Tua boneca não está perdida, ela viajou e deixou uma carta para ti”. A menina arregalou os olhos e disse: “Quero a carta”. O escritor disse que na manhã seguinte iria trazê-la. E assim fez, e a menina parou de chorar. Nas semanas seguintes, Kafka levou as missivas para a menina, nas quais contava histórias de viagens. A menina ficou entretida e,assim, superou a perda de seu objeto transicional, adquirindo outro através da história.

Decidi contar essa história à minha neta, que tinha, à época, também quatro anos. Concluí a história e perguntei: “Carol, quem escreveu as cartas?”. “A boneca, vovô.” Passados dois anos, quando Carol já tinha seis anos, voltei a contar a mesma história. Ao terminar, perguntei mais uma vez: “Quem escreveu as cartas?”. Ela disse: “O titio, vovô”. “Então, o titio mentiu?” “Sim”, disse Carol. E, então, perguntei: “Tua achas que ele fez bem em mentir?”. “Sim, pois foi a única forma de fazer a menina parar de chorar”. Inventar histórias, a ficção, é indispensável para enfrentar as realidades traumáticas.

Dizem que a verdade faz bem à saúde, mas no inconsciente, fazem bem as mentiras feitas de verdade. Logo, há a verdade das mentiras e as mentiras das verdades, que são paradoxos. O paradoxo é a convivência dos contrários, gerando uma nova verdade. Enfim, desde os tempos bíblicos até hoje, a verdade e a mentira convivem. Os enigmas da verdade passam pelo paradoxo, que é uma das palavras-chave junto com a ambivalência. Frente à sedução das certezas convém conviver com a liberdade das incertezas diante da desconcertante condição humana.

Fonte: Zero Hora/Abrão Slavutzky/Psicanalista (abraoslavu@gmail.com) em 11/03/2018

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